O Estadão de hoje traz uma reportagem sobre a divisão de bispos da Igreja Católica provocada pelo processo eleitoral. Leiam um trecho. Volto em seguida:
Por José Maria Mayrink:
A discussão da questão do aborto na campanha eleitoral, que está dividindo os católicos por causa do veto de alguns bispos à candidata petista Dilma Rousseff, provocou um racha no episcopado em nível nacional e deverá deixar sequelas na vida da Igreja, seja qual for o resultado do segundo turno, em 31 de outubro.
A polêmica terá também reflexos na eleição para a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em maio do próximo ano, quando um grupo conservador, contrário à atual linha de diálogo, tentaria tomar o poder para adotar uma posição mais dura de oposição ao governo. Pelo menos, na hipótese de Dilma vir a ser a vencedora.
A confusão foi armada pelo apoio dado pela direção do Regional Sul 1, que reúne as 41 dioceses de São Paulo, em 26 de agosto, a uma nota intitulada Apelo a Todos os Brasileiros e Brasileiras, da Comissão em Defesa da Vida, que recomendava aos eleitores que “independentemente de suas convicções ideológicas ou religiosas”, dessem seu voto “somente a candidatos ou candidatas e partidos contrários à descriminalização do aborto”.
O autor ou inspirador do texto foi o padre Berardo Graz, da diocese de Guarulhos, cujo bispo, d. Luiz Gonzaga Bergonzini, encampou o manifesto e citou, entre os vetados, o nome de Dilma. Passado o primeiro turno, d. Luiz Gonzaga reiterou sua posição, alegando que, embora a petista tenha feito uma profissão de fé em defesa da vida, não se podia acreditar nela. “Dilma, que se faz agora de santinha para dizer que é contra o aborto, já mudou de opinião três vezes.”
Artigos e entrevistas de d. Luiz Gonzaga irritaram outros membros do episcopado paulista, principalmente porque grupos de católicos contrários ao aborto e à candidatura Dilma distribuíram milhares de cópias da nota do Regional Sul 1 de apoio ao manifesto da comissão coordenada pelo padre Berardo. A distribuição do material em paróquias de outras dioceses, à revelia de seus bispos, pôs mais lenha na fogueira. O texto se multiplicou também em mensagens pela internet, espalhando-se por todo o País.
Na Paraíba, o arcebispo de João Pessoa, d. Aldo Pagotto, gravou um vídeo, postado do YouTube, que encampava a nota do Regional Sul 1 e condenava explicitamente a candidata petista. Procurado na quinta-feira por telefone, d. Aldo mandou dizer por sua assessoria de imprensa que não falaria mais sobre o assunto. O arcebispo de Brasília, d. João Braz de Aviz, também criticou a petista. Aqui
Comento
Padres, bispos e outras pessoas ligadas à hierarquia católica — e o mesmo ocorre na maioria das igrejas — podem ter a posição política pessoal que acharem mais conveniente. Como todos nós, têm suas convicções ideológicas, sua visão de mundo para os assuntos da vida laica; assim, como cidadãos que também são, divergem sobre as qualidades deste ou daquele candidatos e os rumos do país.
Mas há algumas coisas que dizem respeito a princípios da Igreja à qual pertencem. E o repúdio ao aborto é uma delas. A Igreja Católica, infelizmente, está contaminada pela ideologia faz tempo — e isso, à diferença do que dizem os partidários do que chamo Escatologia da Libertação, mais a enfraquece do que a fortalece. Para voltar à imagem de Sobral Pinto — um católico tradicionalíssimo, que enfrentou a ditadura de Getúlio Vargas e a ditadura militar—-, muitos setores trocaram a Cruz pela foice e pelo martelo. Em vez de Jesus Cristo, rudimentos de Karl Marx.
O tal manifesto a que dom Luiz Gonzaga Bergonzini deu apoio lembra os princípios da Igreja de que ele é bispo, fazendo um histórico das muitas vezes em que o PT atuou — porque atuou — em favor da descriminação do aborto. Cumpriu a sua obrigação de pastor. Se Dilma Rousseff, candidata do PT, estava — e estava — comprometida com essa luta, esse, sim, é um problema da política, não da religião.
Ocorre que ela tentou resolver a questão por meio da religião, não da política. O que quero dizer com isso? Dilma correu para tentar provar que a) havia mudado de idéia e se tornado uma católica exemplar; b) havia uma grande conspiração político-religiosa contra ela. Que tivesse a coragem de defender o seu ponto de vista, ora essa! Ninguém é obrigado a comungar dos valores cristãos. Nem deve fingir que comunga.
O governo federal, por sua vez, passou a atuar firmemente para rachar os bispos da Igreja Católica. O centro-avante da operação foi Gilberto Carvalho, chefe de gabinete de Lula, ex-seminarista que tem seus interlocutores na Teologia da Libertação. Conseguiu levar a cizânia onde deveria haver consenso. E o consenso é pela condenação ao aborto — ou provem o contrário os adversários do manifesto.
Em uma carta aos bispos em que esclarece a sua posição, escreve d. Luiz Gonzaga Bergonzini:
“O meu comportamento é baseado em minha consciência e no Evangelho. E visa à discussão de valores com a sociedade. Seja qual for o resultado das eleições, filósofos, sociólogos, antropólogos, religiosos e a população já começaram a debater o que chamam de “agenda de valores”. O relativismo na sociedade e na Igreja Católica, sempre lembrado pelo papa Bento XVI, também tem sido questionado: o meu sim é sim e o meu não é não.”
O trecho é impecável! Uma eleição, se querem saber, sempre é decidida pela agenda de valores. E é preciso ter a coragem de distinguir o “sim” do “não”.
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