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domingo, 9 de novembro de 2008

Dor sem hora para acabar



Libertada de um apartamento onde era submetida
a abusos e tortura, Lucélia virou ícone da luta contra
a violência infantil mas continua sem uma família


Ana Beatriz Magno

Ana Araujo

INFÂNCIA COMPROMETIDA
Lucélia Rodrigues aguarda adoção em um abrigo para menores abandonados de Goiânia: medo de reencontrar a madrasta

Lucélia Rodrigues da Silva, 13 anos, mostra quatro buracos talhados com alicate nas laterais da língua, aperta as mãos suadas pelo nervosismo e fala sobre a marca do ferro de passar eternizada nas nádegas. A platéia de operários silencia. Um homem de macacão azul pergunta à menina sobre o futuro. A tutora da garota pega o microfone, conta que uma pop star gospel ficou comovida com o martírio da criança e revela que a empresária da artista vai adotá-la. Lucélia ri. Foi seu único sorriso na manhã da terça-feira 21 de outubro diante de um auditório apinhado de curiosos, na sede da fábrica de rosquinhas Mabel, em Aparecida de Goiânia. A firma é uma das maiores produtoras de biscoito do país. Tem 2 500 funcionários, fabrica toneladas de biscoito por dia e pertence ao deputado federal Sandro Mabel (PR-GO), o mesmo que há três anos freqüentou o noticiário durante o escândalo do mensalão. A menina desconhece o passado do político. O político conhece o passado da menina. Enquanto Mabel se desdobrava para driblar as acusações de mensaleiro, Lucélia era brutalizada pelas mãos de uma empresária a quem sua mãe biológica a entregara em troca de algumas cestas básicas. Durante horas, ela respondeu às perguntas da platéia, revivendo os piores momentos de seu martírio. O que Lucélia fazia numa fábrica de biscoitos?

"Trouxe a garota para ela dar uma arejada", explica a pedagoga Maria Cecília Machado, diretora do Centro de Valorização da Mulher (Cevam), mistura de pronto-socorro e esconderijo de vítimas de violência. Em março passado, a polícia libertou Lucélia de uma masmorra doméstica. Sílvia Calabresi Lima, a empresária que prometera encher a criança de amor, carinho e mimos, encheu o corpo de Lucélia de hematomas. Durante quinze meses, a empresária arrancou as unhas da menina no batente das portas, socou seus dentes, obrigou-a a comer baratas, ração e fezes de cachorro. "Ela dizia que era o meu remedinho e que era para eu tomar porque o diabo morava em mim", lembra a garota, encontrada pela polícia amordaçada e amarrada no teto de um cubículo. Sílvia está presa. Lucélia saiu do cativeiro para as páginas dos jornais, sensibilizou o país e virou uma espécie de celebridade – um ícone da luta contra a violência infantil. Tanto que, na convenção do PT que antecedeu as eleições municipais, em Goiânia, Lucélia estava lá, ao lado dos candidatos, vestida com uma camisa do partido, festejada como "companheira" Lucélia. Mas o que Lucélia fazia num comício?

Fotos Ana Araujo e Sergio de Pinho/DM

ABUSO EM SÉRIE
A menina narra seu sofrimento a uma platéia de operários e participa de um comício do PT

O juiz da Infância de Goiânia, Maurício Porfírio Rosa, mandou abrir uma sindicância para saber como e por que a menina, sob a guarda e a responsabilidade do estado, deixou o abrigo e faltou à escola para participar de uma reunião política. Maria das Dores Dolly, que trabalha há cinco anos no Cevam, autora de vários projetos sociais reconhecidos e premiados, explica: "De fato, levei Lucélia ao encontro. Foi uma mancada. A gente passou rapidamente pela convenção. Entregaram uma camiseta a ela, e ela vestiu. Dei bobeira". O Cevam – uma organização não-governamental sem fins lucrativos que acolhe setenta crianças, mulheres e adolescentes vítimas de violência – é uma referência no estado. "O mais importante agora é que temos de encontrar uma família para Lucélia. Ela não pode mais ficar aqui. Sete meses é muito tempo. Abrigo não é casa", completa. Lucélia, ainda assim, acredita que sua história está perto de produzir um capítulo feliz. Em agosto, a pastora e cantora evangélica Ana Paula Valadão, 32 anos, estrela de shows gospel, estava em Goiânia, soube do caso da menina e pediu para conhecê-la. Com autorização da Justiça, Lucélia foi levada a Belo Horizonte, cidade-sede da Igreja Batista da Lagoinha, fundada pelo pai de Ana Paula. A garota voltou de lá convencida de que, finalmente, encontrara um lar.

"Ao abraçar aquela menina eu não queria mais soltar. Foram momentos tão preciosos para mim, tocando alguém que já sofreu tanto, ministrando o amor de Jesus ao seu coraçãozinho. Ali, pudemos orar por ela, pois há muito a curar em sua alma. Cremos realmente que o Senhor a libertou", escreveu depois Ana Paula em seu blog. "Vou ter uma família", planeja Lucélia, enquanto cantarola o Rap da Família, uma das composições musicais da pastora Ana Paula – "Que bom é ter uma família/ família abençoada por Deus/ Papai, mamãe e filhos todos sempre unidos buscando a Deus". Em sua passagem pela capital mineira, a menina ficou hospedada na casa de Ezenete Rodrigues, também pastora e principal assessora da cantora gospel. "Ela disse para mim que ia me adotar. Eu me converti em Jesus. Preciso corrigir meu gênio", diz a garota. A promessa de adoção, ao que parece, não é tão certa assim – e nem poderia, já que existe um longo caminho judicial antes de o processo começar. "Se eu pudesse, adotaria todas as crianças sofridas do mundo", desconversa Ezenete. O que então Lucélia foi fazer em uma igreja de Belo Horizonte?

Lailson Santos

ESTRELA GOSPEL
A pastora Ana Valadão passou uma temporada com Lucélia: por enquanto, apenas para gravar um clipe

"Aqui, ela foi tocada por Jesus e conheceu nosso trabalho religioso", explicou Ezenete. A pastora Ana Paula colocou em seu site uma foto sua abraçando Lucélia e gravou um clipe gospel com a participação da menina, que será lançado em breve. "Aqui em Goiânia é muito difícil esquecer. Tenho medo de encontrar Sílvia. Fico pensando nisso o tempo todo. A dor não sai de dentro de mim. Por isso, eu queria muito ir para Belo Horizonte. Queria ser pastora. Queria ser outra pessoa", diz a garota, já crente de que sua tragédia não é fruto apenas da perversão humana dos adultos. "A culpada fui eu. Eu, que não estava tocada por Jesus." No abrigo, Lucélia recebe visitas, presentes, mensagens de solidariedade, mas, ao menos oficialmente, ninguém ainda se dispôs a adotar a menina. Na semana passada, o juiz Maurício Rosa autorizou Lucélia a comemorar seu aniversário de 13 anos em companhia das pastoras evangélicas mineiras. Foi uma promessa feita a ela depois da gravação do clipe. Outra notícia boa é que a Justiça condenou a madrasta torturadora a pagar uma indenização de 300.000 reais à garota. Coincidência ou não, os pais de Lucélia, aqueles que a trocaram por comida, já se candidataram a receber a filha de volta. "Essa menina viveu vários ciclos de abandono. Foi abandonada pela mãe. Tinha uma expectativa com a madrasta e de novo foi abandonada. Depois que ela foi libertada do cativeiro, a sociedade também a abandonou. E agora, caso essa perspectiva de adoção não se confirme, há um enorme risco de frustração, e mais uma vez ela pode reviver o abandono", diz a psicóloga Ivânia Ghesti-Galvão, doutora pela Universidade de Brasília.





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