Não vai ser de uma hora pra outra, nem será a bicicleta a salvação para o trânsito paulistano. Mas os especialistas ouvidos pela Trip concordam: para uma metrópole como São Paulo se tornar viável é preciso muito mais foco nas pessoas, no verde, no transporte público, na qualidade de vida e, claro, nas bicicletas
Fujocka
Túnel de acesso À Av. Paulista l 11 de julho de 2015, 17:40
A cena era triste, mas os ciclistas presentes ao ato do dia 13 de junho na curva da avenida Sumaré, em São Paulo, onde poucas horas antes a vida do empresário Antônio Bertolucci fora levada pela roda de um ônibus, não derramavam uma lágrima. Era comecinho de noite e o pessoal acendia velas, escrevia mensagens no asfalto, conversava em voz baixa, dava entrevistas. Mas pareciam todos eles, da ativista Renata Falzoni ao bicicleteiro do bairro, duramente acostumados àquele tipo de tragédia. A morte do executivo da Lorenzetti, 68 anos, foi a que mais chamou a atenção. Mas no ano passado foram 49 os ciclistas mortos na capital paulista. E olha que esse número caiu. Em 2009 foram 61 vidas a menos – a título de comparação, em Copenhague foram apenas três vítimas fatais em 2010. As mortes são o lado mais trágico de um absoluto e inexplicável desprezo do poder público pela bicicleta como opção de transporte. E a bicicleta não é apenas um veículo, mas também uma bela forma de ter mais bem-estar e saúde, só para citar dois dos seus outros benefícios mais óbvios. "A bicicleta supre uma necessidade urbana, além de humanizar a cidade", afirma Ricardo Correa, urbanista, ciclista e sócio da TC Urbes, empresa especializada em mobilidade não motorizada.
Foi Correa que mostrou que é possível chegar pedalando da estação de trem Granja Julieta ao aeroporto de Congonhas – trajeto com cerca de 7 km – em 30 min. De carro, o tempo médio é praticamente o mesmo, 25 min, mas de ônibus se leva uma hora e 20 min, apenas 10 min a menos do que a pé. A despeito da histórica falta de apoio da prefeitura e do governo do Estado, o trânsito de São Paulo já recebe cerca de 156 mil trajetos de bicicleta por dia – segundo levantamento da TC Urbes. É nesse vácuo de atuação que a Trip foi ouvir ativistas e especialistas para pensar como poderia ser uma São Paulo melhor para os ciclistas. A partir dessas conversas, o photodesigner Fujocka interveio em três locais, digamos, pouco amigáveis para as duas rodas em São Paulo (túnel de acesso à avenida Paulista, avenida Santo Amaro e ponte estaiada Octavio Frias de Oliveira). O resultado você vê nas ilustrações desta reportagem.
"Porte de arma": quando um carro a 50 km/h atropela um ciclista ou pedestre, a chance de a pessoa morrer é de 70%. A 70 km/h, sobe para 98%
"Muita gente pensa que não é possível ir de um ponto a outro de bicicleta porque nunca foi. É impressionante como percebemos que 16, 17 km é bem mais próximo do que imaginávamos", diz Arturo Alcorta, educador, ciclista e especialista em segurança no trânsito. Correa, que pedalou mais de 1.000 km em Porto Alegre para desenhar um sistema que integre a bicicleta na vida da cidade, concorda, mas pontua: "Não adianta termos a política pública sem uma infraestrutura de qualidade. Para ser realmente útil, as ciclovias precisam ser pensadas dentro das necessidades da população local". É por isso que a TC Urbes trabalha com projetos participativos, em que antes de decidir o melhor sistema para uma cidade ou um bairro, conversa com usuários – atuais e futuros – sobre suas necessidades. É assim que o grupo da TC Urbes tem feito em projetos como os de Salvador, Porto Alegre, Santo Amaro e Paranaguá, locais em que trabalha para prefeituras e empresas privadas interessadas em integrar a bicicleta no sistema viário.
Todos os entrevistados concordam que um pré-requisito para instalação de ciclovias e ciclofaixas é pensá-las totalmente conectadas ao transporte público. "O ideal é que as ciclovias estejam sempre na transversal de trens e metrôs, e que os caminhos levem às estações, onde deve haver bicicletários para guardar as bicicletas com segurança", afirma Alexandre Delijaicov, professor da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da USP e ciclista. E vai mais longe: "É preciso haver bicicletarias espalhadas pela cidade, e elas devem funcionar até o horário dos trens e metrôs”. Para Alexandre, assim como para outros especialistas, os ônibus deveriam ser reduzidos, dando lugar ao bonde – segundo ele, um transporte mais digno para o usuário e que ocupa menos espaço nas ruas, viabilizando faixas exclusivas para bicicletas.
Fujocka
Av. Santo Amaro l 5 de agosto de 2016, 16:15
Uma ponte = 950 km de ciclovias
Alexandre ainda é a favor de campanhas drásticas sobre o risco dos carros. "Quando um jovem tira sua carteira de motorista está recebendo um 'porte de armas'. Todo motorista é um potencial assassino", diz. A afirmação parece exagerada, mas, quando observamos os números, sua declaração se justifica. Quando um carro que transita a 30 km/h colide com um ciclista ou um pedestre, a chance de essa pessoa morrer é de 10%. Se essa velocidade for 50 km/h, a chance de morte já sobe para 70%. Se o carro estiver a mais de 70 km/h por hora, a chance de esse ciclista ou pedestre morrer é de incríveis 98%. "Em uma cidade que tem 7 milhões de automóveis, mas onde a maioria não tem carro, esse dado deve ser observado com muita cautela", alerta o professor da FAU.
Os especialistas concordam ainda que o mais correto não é falar em cidade ideal para ciclistas, mas sim em cidade ideal para seres humanos. "As cidades têm sido pensadas para os carros e isso é um erro. Um bom exemplo são as alças de acesso nas pontes dos rios Pinheiros e Tietê. Alças de acesso foram criadas para aumentar a velocidade dos carros em rodovias, nunca deveriam ser colocadas no meio da cidade, onde há pessoas transitando a pé e de bicicleta", diz André Takiya, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e ciclista. Para Ricardo Correa, é preciso lembrar que planejar a cidade tendo o carro como ponto de partida é absolutamente excludente. "Não podemos desenhar a cidade para quem tem dinheiro. A mobilidade urbana está ligada à mobilidade social", afirma.
Um bom exemplo dessa exclusão é a ponte estaiada Octavio Frias de Oliveira. A ponte não reserva espaço para pedestres e bicicletas e atende a 130 mil viagens por dia. Acontece que, com os mesmos R$ 184 milhões consumidos em sua construção, seria possível atingir muito mais gente. Ricardo, da FAU, faz a comparação: "Com esse valor poderíamos construir 950 km de ciclovias, o que beneficiaria diretamente 300 mil viagens de bike por dia". Para a repórter, ciclista e ativista Renata Falzoni, a ponte estaiada é um dos melhores exemplos de como o dinheiro público está sendo mal utilizado. "Por ser curva, a ponte custou muito caro, onde já se viu ponte estaiada curva?", questiona. "É um absurdo uma ponte atender a um plano estético e não ao bom uso do dinheiro público", diz Renata.
Ainda há pouco o que comemorar quando o assunto são quilômetros de ciclovias e segurança para ciclistas nas vias, mas não se pode negar que o processo de humanização das cidades brasileiras começou. Os trabalhos ultradetalhados da TC Urbes, por exemplo, já são um legado. "Talvez nós não vejamos mesmo tudo isso sair do papel, mas já está tudo feito, calculado e desenhado nos mínimos detalhes. E se for sendo realizado por partes, conforme seja possível, uma hora esse sistema se interligará e nossos filhos e netos terão uma cidade melhor", aposta Ricardo. O professor Alexandre concorda. "Esses meninos têm feito um trabalho exemplar e de uma seriedade impressionante."
Fujocka
Ponte Estaiada da Marginal Pinheiros l 22 de setembro de 2017, 8:45
"As cidades têm sido pensadas para os carros e isso é um erro", afirma André Takiya, professor da FAU-USP
A Companhia Estadual de Trafego (CET), muito criticada pela falta de atenção aos ciclistas, também vem acordando. Há alguns anos nem sequer havia um responsável pelo assunto no órgão, e agora há um departamento de ciclovias. Mas ainda não dá para soltar rojão. Para se ter uma ideia de como a coisa no poder público segue a toque de triciclo, foi a Secretaria dos Esportes que há alguns anos começou a planejar a ciclovia de lazer que funciona apenas aos domingos e feriados e em parte do dia. A CET e a Secretaria de Transportes só entraram depois, para viabilizar o projeto. Mesmo sendo de uso extremamente limitado, alguns especialistas conseguem ver essa ciclofaixa dominical como algo educativo, tanto para a população como para a CET – que pela primeira vez precisa lidar com a categoria dos ciclistas. Outra coisa boa que está em andamento há alguns anos é o plano diretor de Santo Amaro. Ele prevê que cada 200 vagas de estacionamento que um grande estabelecimento construir deve bancar 1 km de ciclovia – já desenhado.
A ideia é que no futuro esse 1 km se conecte com outro 1 km feito por outra empresa e assim por diante, até fechar a rede, aquela que vai levar você ao seu trabalho com o vento batendo no rosto, como acontece em Paris, Londres, Bogotá, Copenhague, Barcelona ou em qualquer outra cidade que já tenha percebido que a solução para uma metrópole viável, obrigatoriamente, passa também pelas duas rodas.
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