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quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O dilema entre o perdão e a vingança



O dilema entre o perdão
e a vingança

A luta entre a sabedoria que leva à reconciliação e o desejo
de retaliar é mais antiga que a civilização e continua sendo
travada nos dias atuais. A lição da história é que foi através
do perdão que a humanidade conseguiu interromper as
espirais de violência provocadas pela vingança


Thomaz Favaro

"Enquanto dormimos / a dor que não se dissipa / cai gota a gota sobre nosso coração / até que, em meio ao nosso desespero / e contra nossa vontade / apenas pela graça divina / vem a sabedoria." Esses versos, escritos há 25 séculos pelo poeta grego Ésquilo,

formam a mais antiga e, para muitos, a mais bela conclamação ao perdão jamais colocada em pedra, papiro, papel ou tela. Bob Kennedy recorreu a ela na tarde do dia 4 de abril de 1968 para, durante um comício, consolar a multidão revoltada com a chegada da notícia do assassinato do líder pacifista Martin Luther King. Dois meses depois, o próprio Bob seria morto a tiros. Em seu túmulo no Cemitério Nacional de Arlington foram gravados esses mesmos versos de Ésquilo, uma passagem da peça Agamenon. A luta entre a sabedoria que leva ao perdão e o desejo de vingança, porém, é mais antiga do que a civilização e é provável que sobreviva a ela, pelos exemplos a que assistimos hoje por toda parte. "Tinha contas a ajustar com ele", disse o judoca português Pedro Dias, que buscou forças não se sabe onde para derrotar na Olimpíada de Pequim o favorito lutador brasileiro João Derly. Dias explicou que o desejo de vingança foi sua motivação. Derly roubara-lhe uma namorada no passado. "Ele foi humilhado, humilhado por mim", comemorou Dias. O sentimento do judoca é da mesma natureza do que acometeu a atriz Jennifer Aniston quando descobriu que Brad Pitt a traía com Angelina Jolie. Depois da separação, Jennifer esvaziou o guarda-roupa de Brad e doou todas as peças a uma instituição de caridade – a versão politicamente correta de jogar a mala dele no meio da rua.

Parece fazer parte do mecanismo instintivo de defesa dos seres humanos responder a um tapa com outro tapa. Os bebês fazem isso com aquele jeito inocente e angelical que torna doloroso chamar a reação de vingança. Dar a outra face é a exceção pregada, com sucesso duvidoso, há mais de 2 000 anos pelo cristianismo. Antes de Cristo, as religiões não apenas amparavam como incentivavam a vingança desproporcional ao agravo. O Velho Testamento é repleto de passagens "olho por olho". Nenhuma tão constrangedora quanto aquela em que o profeta Eliseu é chamado de "careca" por um grupo de crianças e, em resposta, manda dois ursos sair da floresta e despedaçar 42 criancinhas. Deve ser o único caso registrado em que uma peruca teria evitado uma carnificina. Como instituição, a religião é má conselheira nesses casos. As guerras religiosas são sempre as mais inexplicáveis, duradouras e cruéis da história humana. Para entender a origem do desejo de vingança e aprender a domá-lo, o melhor a fazer é trafegar por fora da religião.

Voltando ao caso do judoca e da atriz, bem mais perto de nós do que os ursos famintos das Escrituras, o que se observa é apenas uma diferença de estilo. O homem usou da força bruta para subjugar o rival diante de uma enorme platéia. A mulher recorreu a método mais sutil, na privacidade do lar, mas tendo o cuidado de informar as revistas de fofoca de forma a tornar público o lance do traidor.

É voz corrente que as mulheres são mais vingativas que os homens. Há controvérsias. Mas, sem dúvida, de Teodora – esposa do imperador romano do Oriente Justiniano, que convidou a população para um espetáculo no estádio e mandou degolar 30 000 pessoas por insurreição – a Jennifer Aniston, a mulher é mais espalhafatosa em sua vingança. O psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, do Hospital das Clínicas de São Paulo, não vê nisso uma especial crueldade feminina, mas apenas uma característica inata delas. Diz ele: "Tanto no afeto quanto na vingança, a mulher se expõe mais". Quando os casamentos infelizes eram indissolúveis também pela lei dos homens, tanto o marido quanto a mulher tendiam a se amargurar silenciosamente, vivendo separados sob o mesmo teto e evitando demonstrações públicas do fracasso do relacionamento. Hoje é tudo mais fácil do ponto de vista econômico e jurídico. Culturalmente, nem se fala. Os casamentos não costumam durar o tempo suficiente para que as mágoas acumuladas transbordem para o prato frio da vingança. Ainda assim, o divórcio tornou-se uma das poucas situações no mundo moderno nas quais se pode realmente machucar o outro sem quebrar a lei. As ameaças de tirar a custódia dos filhos, a disputa pela posse dos bens e a roupa suja lavada em público são perfeitamente toleradas durante o processo judicial do divórcio.

Christophe Simon/AFP

HAVIA TRÊS NO TATAME
Dias, de azul, derrota Derly, na China. Medalha era o que menos importava. O judoca queria se vingar do roubo da namorada

Os entendedores da mente humana enxergam em boa parte dos episódios que chamamos de vingança apenas explosões momentâneas de ódio e reflexos de defesa. Vingança mesmo começa pelo coração, é tramada no cérebro, guardada na memória, e sua execução é cuidadosamente lapidada pelo inconsciente. "Enquanto dormimos / a dor que não se dissipa / cai gota a gota sobre nosso coração..." Se não nos socorre a sabedoria, a vingança encontra seu caminho. Por que ela não se dissipa, não desaparece lentamente como o conhecimento acumulado ou o nome daquela pessoa importante com quem cruzamos no passado e que seria vital lembrar agora? Os psicólogos colocaram de pé duas teorias principais sobre o poder de permanência do desejo de vingança. A vingança é um impulso que se desenvolve basicamente em quatro etapas. A pessoa entende que sofreu um dano e conclui que este foi causado por outra pessoa. Em seguida acredita que esse dano foi injusto. E, por último, sente o desejo de retaliar. A questão que se coloca a partir desse ponto é a seguinte: por que o homem carrega dentro de si o espírito vingativo? Duas teorias estão entre as mais prováveis. A primeira é que o desejo de vingança é um tipo de toxina existente na mente apenas das pessoas rancorosas. Isso pode ser atribuído a perturbações mentais ou morais, a pais ausentes na infância, a fatores culturais. A outra possibilidade é que se trata de um sentimento tão natural no ser humano quanto o amor, o ódio e o medo. Um século de pesquisas sociais e biológicas deu aos cientistas a certeza de que a segunda teoria é a mais sólida. O desejo de vingança é uma parte perfeitamente normal da natureza humana e sua supressão pode ser apenas um daqueles recalques que a vida moderna em sociedade nos incute. O psicólogo americano Michael E. McCullough, da Universidade de Miami e autor de Além da Vingança – A Evolução do Instinto do Perdão, enxerga a questão pela lente da biologia. Disse ele a VEJA: "Todo ser humano nasce biologicamente equipado para retaliar quando se ressente de alguma ofensa ou agressão".

O biólogo Keith Jensen, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig, na Alemanha, acredita que as raízes da vingança precedem o surgimento do Homo sapiens. Diz ele: "A existência de desejo de vingança entre os chimpanzés sugere que, nos seres humanos, esse sentimento tem sua origem em um ancestral comum, que viveu entre 5 milhões e 7 milhões de anos atrás". Colocar a culpa no macaco não explica tudo, mas ajuda a lembrar que, por mais anjo decaído que seja, o homem tem seu lugar cativo na escala zoológica. As emoções humanas só podem ser entendidas quando se leva em conta que, tanto quanto nossos narizes e joelhos, elas foram moldadas por forças evolutivas no decorrer de milhões de anos. O medo, por exemplo, é uma emoção útil evolutivamente. Ele foi vital para a preservação da espécie, por nos manter atentos às ameaças potenciais e para evitar que corrêssemos riscos. A vingança, especulam os antropólogos, deve ter sido um poderoso elemento de dissuasão, inibindo o agressor e fazendo-o pensar duas vezes antes de atacar de novo. Sentir, planejar e executar um ato de vingança pode ter também tido o papel de melhorar o sentido de cooperação dentro de um grupo de hominídeos.

Em uma visão mais requintada, a vingança, quando voltada para dentro do grupo, transforma-se em punição. Ela é mais cerebral, controlada, e cumpre uma função bem mais específica no processo evolutivo. É dessa vingança que a deusa grega Nêmesis era encarregada. Narciso está hipnotizado pela própria beleza e não quer mais nada com as ninfas desejosas, colocando em perigo a espécie por falta de herdeiros? Nêmesis vai obrigá-lo a passar o resto da vida mirando o próprio rosto nas águas do lago. A tragédia Orestéia, também de Ésquilo, é a representação, válida ainda hoje, de que a vingança feita pela Justiça, a punição, é consumada pelos homens, mas sua origem é divina. No final da trilogia, a deusa Atena se encarrega do julgamento de Orestes, que matou a própria mãe para vingar a morte do pai, numa cadeia de retaliações que remontava a gerações. As Erínias (fúrias, na tradição romana), divindades vingadoras que o perseguem pelo matricídio, encarregam-se da acusação. Orestes defende-se com a ajuda do deus Apolo. Após o julgamento, Atena inocenta-o – com o voto de Minerva, nome pelo qual ela é conhecida na tradição romana. As divindades vingadoras recebem, então, o nome de Eumênides ("deusas veneráveis") e passam a habitar a pólis grega. Esse momento é interpretado como a institucionalização da vingança, que deixa de ser um direito privado para se tornar público, decidido por um tribunal. A moral da história? Quando não há punição dos que cometem abusos e excessos, basta apenas um egoísta para arruinar a cooperação no grupo e diminuir suas chances de sobrevivência. Isso valia para os macacos, valeu para os hominídeos e vale para qualquer grupo humano hoje – seja uma empresa, seja uma escola, seja um pelotão de fuzileiros navais.

Longe de ser um anacronismo, "a herança evolutiva é rica em valores bastante úteis ao homem moderno", opina o filósofo americano Jeffrie Murphy, autor do livro Acertando as Contas: o Perdão e Seus Limites. Que qualidades podem existir no ressentimento? Murphy sugere três: auto-respeito, autodefesa e respeito pela ordem moral. "A pessoa que nunca se ressente, seja de qual for a ofensa, pode ser um santo. Mas a falta de ressentimentos pode também revelar uma personalidade servil e sem respeito por seus direitos e sua condição de indivíduo livre e moralmente respeitável." Aqui se chega ao nó da questão. O desejo de vingança constitui uma parte da natureza humana. Ajuda a estabelecer parâmetros morais no dia-a-dia. Ao mesmo tempo pode detonar em forma de violência selvagem. Essa característica cruel assusta as pessoas e mantém a sociedade de sobreaviso. Por sorte, entre o desejo de vingança e a execução da ação vingativa existe espaço suficiente para o homem exercer aquilo que a Bíblia chama de livre-arbítrio. A escolha entre o bem e o mal. Refrear o desejo de vingança não é fácil quando alguém sente o coração transbordar de fúria. "A urgência de restauração de um rombo no ego, seja por uma injustiça pessoal, seja pela perda brutal de alguém querido, impede que a pessoa tenha clareza para julgar em que medida o agressor deve pagar pelo que fez", diz a psicanalista Ana Cecília Carvalho, coordenadora de um grupo de pesquisa sobre a psicanálise da vingança na Universidade Federal de Minas Gerais.

A cultura é um fator determinante na freqüência com que os desejos de retaliação se manifestam numa sociedade. O sentimento de vingança é controlado à medida que um país se desenvolve economicamente e suas instituições democráticas se tornam mais sólidas. "Com a melhora de indicadores sociais, econômicos e a conquista de estabilidade política das nações, as pessoas se tornam menos vingativas", diz o economista turco Naci Mocan, autor de um estudo comparativo sobre o desejo de vingança em 53 países. O Brasil aparece em terceiro lugar entre as nações nas quais o sentimento de vingança é mais acentuado, atrás da Bielo-Rússia e da Bélgica. "Se o sistema jurídico funciona, as pessoas esperam que os conflitos terminem com a correção do mal que lhes foi causado", disse o economista a VEJA. Quando não funciona, a insatisfação com o sistema legal estimula os sentimentos de vingança e os indivíduos a buscar a resolução privada de seus conflitos.

Uma forma bem atual de vingança é escrever um livro expondo os podres de um desafeto. A primeira-dama da França, Carla Bruni, já provou desse veneno. No best-seller Nada Grave, de 2004, a escritora francesa Justine Lévy a descreveu como uma predadora sexual que se comporta como se fosse dona de todos os homens. Explique-se tanto ódio: quatro anos antes, Carla havia roubado o marido de Justine. É comum também o ataque direto à parte mais sensível do corpo humano, o bolso. A bilionária americana Leona Helmsley, conhecida como "a rainha da maldade", usou o testamento para se vingar da família, que detestava. Quando morreu, no ano passado, destinou a maior parte da fortuna de 5 bilhões de dólares para instituições de caridade. Também deixou 12 milhões de dólares para seu cãozinho maltês, Trouble. Dois de seus quatro netos receberam quantias equivalentes à metade da legada ao cachorro. Os demais parentes foram simplesmente ignorados. "Eles sabem por quê", escreveu maldosamente Leo-na no testamento.

Mas qual desses elementos da natureza humana – o desejo de vingança e a capacidade de perdoar – terá dado a maior contribuição na jornada do homem até os dias de hoje? Foi através da vontade de perdoar que a humanidade conseguiu interromper longas espirais de violência provocadas pela vingança. Como o ser humano está propenso a inevitavelmente cometer alguns erros durante sua vida, nada mais normal que ter um pouco de flexibilidade para lidar com eles. "Nós não podería-mos ter evoluído como espécie sem a capacidade de suportar alguns prejuízos de vez em quando", diz o psicólogo americano Michael McCullough. Deixar passar a oportunidade de vingar-se de alguém é uma maneira de prolongar relacionamentos importantes, como um casamento ou uma amizade duradora. McCullough é de opinião que a vontade de perdoar aflora naturalmente no indivíduo mediante certas condições. Somos mais propensos a perdoar uma pessoa quando ela nos dá provas de que jamais vai cometer o mesmo erro. Também perdoamos mais as pessoas das quais sentimos pena. As mais variadas compensações, desde um pedido de desculpas até uma indenização milionária, também servem como estímulos à conciliação. A natureza, que nos armou com o desejo de vingança, sabiamente implantou em nossos genes esse oposto ainda mais poderoso: a capacidade de perdoar. "...e contra nossa vontade / apenas pela graça divina / vem a sabedoria."

Maldade de adolescente

No início de sua carreira de modelo, quando tinha 16 anos, a paranaense Adriane Grott foi convidada a representar sua escola em um concurso de beleza em Floraí, cidadezinha de 5 000 habitantes onde vivia fazia pouco tempo. Para desfilar, pediu emprestada uma saia de uma amiga. Ganhou o concurso e o ódio da colega. "Devolvi a roupa, mas ela espalhou que eu tinha roubado a saia", conta Adriane, hoje com 27 anos. "Em pouco tempo toda a cidade achava que eu era ladra. Foi horrível." A história levou meses para ser esquecida.

Fotos Lailson Santos

A dor aplacada

Ives, filho do comerciante Masataka Ota, foi seqüestrado e morto aos 8 anos, em 1997. O pai indignou-se ao descobrir que os assassinos não podiam ser condenados à prisão perpétua. "Eu queria me vingar de qualquer jeito", conta Ota. "Cheguei a pensar em invadir o fórum no dia do julgamento e matar os três a tiros." Ele desistiu da vingança por entender que significaria um novo sofrimento para a sua família. Anos depois, ele encontrou-se com os assassinos na cadeia. A experiência ajudou a aliviar sua dor. "O ódio e o desejo de vingança não me permitiam viver", diz Ota.

Retaliação planejada

"Passei seis meses arquitetando a vingança contra meu ex-noivo, que havia me difamado para amigos e familiares", conta a professora paulista Janaina Azevedo, 25 anos. Seu primeiro passo foi levar a ex-sogra, que tem trauma de alcoolismo, para ver o filho embriagado num bar. Depois, conseguiu que o ex perdesse dois empregos. Para completar, levou ao grupo de roqueiros do ex-noivo um vídeo em que ele aparecia com pagodeiros – o que acabou com a amizade. "Assim pude dar a história por encerrada", diz.

O que fazer se o assassino sai livre

O advogado Ari Friedenbach é pai de Liana, seqüestrada aos 16 anos, estuprada e assassinada na Grande São Paulo, em 2003. Além da dor pela perda da filha, precisou se conformar com a pena branda aplicada ao assassino – três anos de internação na Febem. "No primeiro momento, sob forte emoção, a opção da vingança passou pela minha cabeça", diz. Para superá-la, engajou-se em discussões sobre a criminalidade e colabora no Programa Liana Friedenbach, da Congregação Israelita Paulista, para a formação de jovens líderes comunitários.

Incidente no shopping

A empresária Maria Amélia Aquino, de 57 anos, admite que sente prazer na vingança. Certa vez, enquanto esperava para estacionar o carro em um shopping, uma mulher rapidamente ocupou a vaga. Maria Amélia reclamou e tudo o que ouviu foi: "Querida, pode ter certeza de que a minha pressa é muito maior que a sua. Se quiser ficar aqui aguardando, eu volto já". Maria Amélia esperou a atrevida entrar no shopping e esvaziou os quatro pneus do carro dela. Ainda deixou um bilhete: "Estava com tanta pressa, querida, mas agora vai ter de esperar o guincho para te levar para casa".

Sem vergonha de ser vingativo

Divulgação
JARED DIAMOND
O direito individual ao revide cria intermináveis ciclos de violência


O americano Jared Diamond, da Universidade da Califórnia, é autor do best-seller Colapso, em que analisa o que leva uma sociedade ao fracasso. Em seu próximo livro, ainda sem título, Diamond compara hábitos prevalentes em diversos tipos de sociedade. O escritor conversou com o editor Diogo Schelp.

De que maneira a vingança em comunidades tribais se diferencia da existente nas sociedades modernas?
Na ausência de um poder central, as pessoas têm o direito de revidar por conta própria. Isso cria ciclos intermináveis de violência. Já quem vive em um estado moderno é estimulado a conter o desejo de vingança. Se as pessoas fossem livres para retaliar à vontade, a sociedade entraria em colapso.

As sociedades tribais são mais violentas?
Ao contrário, elas tendem a encaminhar as disputas para a conciliação. Na sociedade moderna aprendemos que os sentimentos vingativos são primitivos e que devería-mos ter vergonha de senti-los. Isso faz com que a maneira moderna de resolver disputas em tribunais – em casos de divórcio, herança ou acidentes de automóveis, por exemplo – não favoreça a reconciliação. Temos de encontrar uma forma mais saudável de lidar com a vingança, sem cometer excessos ou infringir a lei. O primeiro passo é admitir a existência desse sentimento e não enterrá-lo em algum canto da memória.

A vingança tem um papel nas guerras que os Estados Unidos travam no Iraque e no Afeganistão?
Os Estados Unidos atacaram o Afeganistão logo após os atentados de 11 de setembro, em 2001. A pergunta é: fomos à guerra em busca de vingança pelos ataques às torres gêmeas? Era perfeitamente óbvio que se os Estados Unidos não fizessem algo estariam mostrando ao mundo sua fraqueza. A invasão americana do Iraque é uma situação diferente. Há quem diga que nosso presidente, George W. Bush, tomou essa decisão para terminar o trabalho que seu pai deixara pela metade durante a primeira guerra do Golfo, quando Saddam Hussein pôde conservar o poder.

O conflito entre israelenses e palestinos pode ser analisado sob a óptica da vingança?
A hostilidade entre israelenses e os vizinhos árabes me lembra as guerras tribais em Papua-Nova Guiné. Os familiares de alguém assassinado vingam-se matando um membro do clã do assassino. Esse clã, por sua vez, se vê na obrigação de retaliar com nova morte e assim sucessivamente. O resultado é uma guerra sem fim, em que nenhum dos lados aceita ceder. Mas essas guerras também chegam ao fim. Para que isso ocorra é preciso preencher uma das três condições. Primeira, ambos os lados têm perdas massivas e equivalentes. Segunda, ambos ficam esgotados e surge uma terceira parte que os ajuda a se reconciliar. Terceira, minha experiência em Papua-Nova Guiné mostra que o surgimento de um inimigo comum também pode levar ao fim um conflito entre dois inimigos tradicionais. Só não sei dizer qual dessas circunstâncias levará à paz entre palestinos e israelenses.

Punir e não vingar

A humanidade encontrou maneiras de conter a força vingativa que existe na natureza humana. O principal controle foi o sistema judiciário, que passou a mediar as disputas entre vítimas e agressores

Orestéia (458 a.C.) A tragédia grega, de Ésquilo, representa o fim do direito privado à vingança como forma de defender a honra. A punição passa a ser decidida por um tribunal

Marco Aurélio (121-180) O imperador estóico, adepto da filosofia da moderação, deu mais direitos aos acusados e eliminou abusos nas penas aplicadas pelo direito romano

Thomas Hobbes (1588-1679) Para o filósofo inglês, a punição institucional não deveria compensar um mal passado, mas sim auxiliar na construção de uma sociedade melhor

Cesare Beccaria (1738-1794) O criminologista italiano combateu a tortura e o tratamento cruel dado aos presos. Para ele, a finalidade da punição é desestimular a reincidência e novos crimes

Cadeira elétrica (1890) Em princípio, a pena de morte é aplicada a criminosos cujos impulsos violentos não seriam contidos pela cadeia. Hoje é considerada desumana na maioria dos países

Com reportagem de Carolina Romanini e Roberta de Abreu Lima

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