Ontem
A"candura" de "Aniki Bobó" ainda hoje cativa Manoel de Oliveira. O quase centenário cineasta recorda com precisão a história atribulada de um filme que começou por ser pateado pelas plateias portugueses até ao momento em que a aclamação internacional, quase duas décadas depois, o tornou um clássico intemporal da sétima arte.
Como avalia hoje "Aniki Bobó", 66 anos depois da estreia?
O filme reflecte o que pensava na altura sobre o cinema. Estava obcecado com as ideias sobre os movimentos vanguardistas da época que ia recolhendo através das revistas. Era uma época em que a montagem assumia uma importância primordial. São tempos que já passaram e o "Aniki Bobó" reage um pouco a isso. É a evolução das coisas.
Ainda se surpreende quando o vê?
Pela candura, sobretudo. Quando filmei o "Aniki Bobó", já tinha 33 anos, mas ainda conservava a memória da meninice.
É verdade que o filme esteve para se chamar "Corações pequeninos" e, mais tarde, "Gente miúda"?
Sim. Isso aconteceu quando andava à procura, na Ribeira, de miúdos que pudessem entrar no filme.
Por que resistiu à tentação de repetir a fórmula de "Aniki Bobó"?
Não me seduz isso. Soa a exploração.
Acha que "Aniki Bobó" é um filme irrepetível, até pelas circunstâncias em que foi feito?
Pelos custos que envolve, fazer hoje um filme de época é impossível. Mesmo quando fiz a Princesa de Clèves tive que actualizá-la. Mas, acima de tudo, a juventude em que vivi era totalmente diferente da actual. A candura de que falava há pouco perdeu-se.
É também por isso que o filme continua a atrair novas gerações?
Felizmente, os meus filmes têm resistido bem ao tempo. Aliás, se não resistissem, já não existiam. Não deixa de ser curioso, porque, quer o "Aniki Bobó" quer o "Douro, faina fluvial", foram muito mal recebidos na altura. O "Aniki" teve acusações fortíssimas.
Chegou a recear que o filme viesse a ser alvo da censura?
Sim, dizia-se isso com frequência.
Por que motivo não gosta que o seu filme seja apontado como um precursor do neo-realismo italiano?
Não acho que o seja. O que falta no "Aniki Bobó" - embora esteja sugerido muito suavemente - é a repressão que caracteriza os filmes dessa corrente, muito marcada do ponto de vista político. O Visconti, por exemplo, era filiado no Partido Comunista.
Acompanhou o percurso posterior de algum dos meninos da Ribeira que aparecem no filme?
Quando fiz 90 anos, houve uma reunião no Rivoli na qual tive oportunidade de conviver com vários membros da equipa.
Está em ano do centenário e não faltam homenagens em sua honra. Não sente cansaço por ter de responder a tantas solicitações?
Cansado não será o termo. Não me sinto talvez merecedor de tantas festas. Sinceramente, não sei se essas homenagens se devem mais ao meu trabalho ou à minha idade... Com a diferença de que o meu trabalho é da minha responsabilidade, enquanto a idade é um mero capricho dos deuses. Só posso estar grato.
E em Setembro recomeça a filmar.
Não sei, vamos ver se o produtor consegue as massas suficientes. Vou filmar um texto muito bonito de Eça de Queirós, "As singularidades duma rapariga loura". Foi um projecto que me surgiu quando estava a filmar "Espelho mágico". E logo de seguida quero fazer "O estranho caso de Angélica", que conto estrear no próximo Festival de Cannes. É uma forma singela de corresponder à Palma de Ouro que me entregaram há algumas semanas.
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